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terça-feira, agosto 09, 2005

Girafas, mariposas e anacronismos didáticos

Isabel Rebelo Roque (*)

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É bem possível que alguns leitores, independentemente de terem seguido esta ou aquela carreira depois de adultos, ainda se lembrem de algumas coisas de caráter mais pitoresco que estudaram nas aulas de Ciências e de Biologia.

Ao aprendermos sobre evolução, dificilmente teremos deixado de ver estampados nos livros didáticos dois exemplos clássicos: primeiro, o da explicação de Lamarck para o tamanho do pescoço das girafas atuais e seu contraponto darwiniano; segundo, o da seleção natural ocorrida em populações de mariposas dos bosques da Inglaterra durante a Revolução Industrial, que foi alvo de uma série de experimentos realizados na década de 1950 pelo cientista Bernard Kettlewell.

Ocorre que ambas as histórias têm protagonizado, nos últimos anos, calorosas polêmicas na mídia científica internacional, enquanto aqui nada é dito a respeito. Ambos os assuntos abrem, também, complexa discussão que envolve interesses e responsabilidades da comunidade científica sobre o modo como divulga – ou deixa de divulgar – seus estudos e conclusões. Em se tratando de divulgação com fins didáticos, então, a questão torna-se ainda mais delicada.
Por exigência de meu trabalho (sou editora de livros didáticos), precisei pesquisar esses temas, e foi então que constatei a absoluta falta de informações, seja em meio eletrônico ou impresso, em âmbito nacional. Ao que tudo indica, eles não parecem ser suficientemente relevantes para que a comunidade científica brasileira deles se ocupe. Afinal, não é por este ou outro equívoco ou por um ou outro livro didático ou curso desatualizado que a ciência haverá de parar.

Enquanto isso, vão se mantendo, incólumes e imutáveis, as referências às girafas de Lamarck/Darwin e às mariposas de Kettlewell em aulas de Ciências e de Biologia, em exames vestibulares, em inúmeros livros didáticos e em sites e portais de educação para o Ensino Fundamental e Ensino Médio, que pululam na internet.

Tentarei explicar aos leitores, em linhas gerais, do que se trata, dedicando-me, neste primeiro artigo, ao mais simples e (aparentemente) menos polêmico: as girafas de Lamarck. Em outra edição deste Observatório tratarei do caso das mariposas Biston, tema que recentemente mereceu artigo no jornal The New York Times.

Um exemplo clássico

Jean-Baptiste Lamarck, naturalista francês evolucionista, lançou seu livro Philosophie zoologique no mesmo ano do nascimento de Charles Darwin, 1809. Em sua explicação para a evolução dos seres vivos, elaborou duas hipóteses: a do uso e desuso e a da transmissão dos caracteres adquiridos. Segundo essas idéias, os seres vivos seriam capazes de se adaptar a pressões impostas pelo ambiente, para isso utilizando algumas partes do corpo mais intensamente que outras. As partes mais utilizadas se desenvolveriam mais; as menos utilizadas tenderiam a se atrofiar ou mesmo desaparecer. Daí o nome "uso e desuso".
Lamarck ia além, afirmando que essas modificações sofridas pelos seres vivos em resposta a uma imposição do meio seriam transmitidas a sua descendência. Cabe lembrar que até então nada se sabia sobre o papel da herança genética na transmissão de características de geração a geração; Gregor Mendel, que lançou as bases da genética, só viria a nascer em 1822.

E qual o exemplo clássico utilizado para explicar a teoria lamarckista? É o do pescoço das girafas. Nos livros didáticos, costumamos ler que, segundo Lamarck, os ancestrais das girafas teriam pescoço curto. A necessidade de alcançar as folhas das árvores, principalmente em épocas de escassez de alimento, quando só restavam as folhas mais altas, teria provocado o constante exercício de esticar o pescoço. A característica "pescoço alongado" seria, então, transmitida à descendência. O resultado, após milhares de anos de uso intensivo do pescoço e transmissão da característica à prole, teria sido o que vemos hoje: que as girafas têm pescoço longo e musculoso.
Em geral, nos livros, é apresentado o contraponto darwiniano a essa explicação: espécimes diferentes nasceriam com comprimentos de pescoço ligeiramente diferentes. Os indivíduos "privilegiados" nesse quesito apresentariam vantagem sobre os demais na hora de alcançar as folhas mais altas. Em épocas de escassez, essa diferença seria decisiva para definir quem sobreviveria e quem não. Os sobreviventes, com a característica "pescoço mais longo" ("de nascença"), conseguiriam transmiti-la à prole.

Belo e didático exemplo, não? Sim. Seria perfeito, não fossem alguns senões. O primeiro deles é que Lamarck jamais deu a esse exemplo o destaque que ele tem recebido há quase 200 anos.

Achar o fio da meada

O estranho caminho seguido pelo exemplo da elongação do pescoço da girafa – de um mero parágrafo escrito por Lamarck, até sua transformação em "carro-chefe" da teoria lamarckista – é examinado em detalhe em ensaio assinado pelo paleontologista e divulgador científico Stephen Jay Gould, morto recentemente. Intitulado The tallest tale (uma alusão à expressão "tall tale", história cujos detalhes são difíceis de engolir), o ensaio foi publicado originalmente na Natural History Magazine, em 1996.

Em seu texto, permeado do humor sarcástico que o caracteriza, Jay Gould tenta retomar o fio da meada. Observa que, na Philosophie zoologique, Lamarck ocupa-se das girafas somente em um parágrafo, dentro de um capítulo em que figuram muitos outros exemplos a que ele possivelmente atribuiu maior importância.

Quanto a Darwin, em sua primeira edição da Origem das espécies (1859) ele não faz qualquer referência ao pescoço da girafa, mas sim, em outro contexto, à sua cauda!

Jay Gould especula que o exemplo do pescoço da girafa teria assumido importância na literatura científica graças a St. George Mivart, que, em 1871, publicou uma crítica ao darwinismo: The genesis of species. Mivart centrou sua argumentação no pescoço da girafa, e, como sua finalidade era atacar o darwinismo, revestiu sua argumentação de um caráter caricatural.

Darwin, em reação ao ataque de Mivart, acrescentou à sua sexta e última edição da Origem das espécies (1872) um capítulo em que discorre extensivamente sobre o assunto. É essa edição que tem servido de base às versões subseqüentes, e não a primeira, de 1859, em que ele não faz qualquer menção ao pescoço da girafa.

E assim essa história ganhou os livros escolares e em muitos deles perdura até hoje. O agravante é que – a par do fato histórico de que Lamarck jamais deu ao pescoço da girafa tanta relevância – dados subseqüentes, resultantes da observação de girafas em seu hábitat (a África), derrubam de vez o "conto" das folhinhas mais altas em tempos de escassez.

Na verdade, a importância do tamanho e da robustez do pescoço da girafa não se resume a alcançar ou não as folhas mais altas. Entre os machos, por exemplo, o pescoço é uma importante "arma" usada para garantir a dominação e também a preferência das fêmeas, por meio de verdadeiros duelos nos quais às vezes o perdedor acaba perdendo também a vida.
As girafas também têm no comprimento do pescoço uma verdadeira "torre de observação", com a qual podem manter controle sobre a aproximação de predadores, por exemplo. Por si sós, esses dois usos do pescoço – na disputa entre machos e na observação do ambiente – já constituem, segundo os cientistas, fatores bastante relevantes para a importância de seu comprimento.

Jay Gould termina seu artigo especulando sobre as possíveis razões de continuarmos a aceitar o velho "conto" do pescoço esticado para alcançar folhinhas. Talvez porque adoremos uma linda história, ainda que falsa; talvez também porque não estejamos habituados a questionar pretensas autoridades – neste caso, a dos livros.

Mais lenha na fogueira

No mesmo ano em que Jay Gould publicou seu artigo (1996), os zoólogos Robert Simmons e Lue Scheepers publicaram, na American Naturalist, o artigo "Winning by a neck: sexual selection in the evolution of giraffe" ("Vencendo por um pescoço: seleção sexual na evolução da girafa"). Nele, a dupla põe mais lenha na fogueira ao afirmar que, durante a estação seca, as girafas alimentam-se dos arbustos, e que é na estação de chuvas que elas se voltam para o alto das acácias, situação em que nenhuma competição é esperada.

Outro aspecto observado por Simmons e Scheepers é que as fêmeas passam metade de seu tempo alimentando-se com o pescoço em posição horizontal (comportamento tão típico que é útil para identificar o sexo do animal a distância). Além disso tudo, ambos os sexos alimentam-se mais freqüentemente com o pescoço curvado para baixo. Tudo isso, segundo eles, sugere que o tamanho do pescoço não teria evoluído especificamente em decorrência da busca de alimento em locais mais elevados.

Para refutar a possível objeção de que a competição entre machos não explicaria o comprimento do pescoço das fêmeas, Simmons e Scheepers argumentam que ele seria um resultado da correlação genética entre os sexos, e que outras espécies exibem correlações similares entre sexos – ou seja, no caso das fêmeas, o pescoço longo teria vindo como uma espécie de "brinde".
Outro artigo sobre o assunto, assinado pelo professor Steve Rissing, do Departamento de Evolução, Ecologia e Biologia dos Organismos da Ohio State University, foi publicado na Columbus Dispatch em fevereiro de 2001. Em seu texto, ele se refere ao "conto" das girafas como tema favorito dos "cartunistas da arca de Noé" e "ícone" dos textos científicos sobre a seleção natural de Darwin. Mas analisa que a derrubada da história tal qual a vemos nos livros não significa a morte do darwinismo. O fato de se haver concluído que o comprimento do pescoço da girafa é um exemplo de seleção sexual, e não de seleção natural, não invalida a teoria darwinista, já que Darwin, em sua teoria, considerou também a existência de outros mecanismos na evolução dos seres vivos. Mas ele é categórico quanto à necessidade de se atualizar os textos. "That’s OK; that’s science; that’s how we learn", diz ele.

Muito barulho por nada?

Afinal, qual é a importância de tudo isso? O lamarckismo, seja quando se refere (ou não) a pescoços de girafa, seja quando recorre a qualquer outro exemplo, já não foi devidamente nocauteado? Sim, é um fato. Acontece que não se trata, neste caso, apenas de preservar a memória de um cientista, atribuindo a "César o que é de César" e a Lamarck o que é de Lamarck. Para usar uma expressão bastante popular, "o buraco é mais embaixo".
Quando falamos em atualizar as informações nos materiais de divulgação científica, nos cursos e nos livros didáticos, falamos em colocar em evidência um problema bem maior: o da "cristalização" de determinados conceitos, em ciência como também em outros campos do conhecimento. E também do problema crônico da não-ventilação das informações a que têm acesso professores e autores de material didático, os quais, em geral, são também professores – com formação superior na área, mas não cientistas.

Falamos do risco de apresentar a ciência como algo sagrado e fechado, que permanece imutável, a salvo de reavaliações, e ao mesmo tempo – como a história das girafas mostrou – tão suscetível a ponto de cair em "armadilhas" de reedições.
Falamos, ainda, do comodismo de nos agarrar a "modelos" científicos que constituiriam excelentes confirmações de teorias "oficiais" – não fossem eles inconsistentes como modelos e não fossem elas apenas teorias.

Contrapor a suposta explicação de Darwin para o tamanho do pescoço da girafa à de Lamarck, à luz dos conhecimentos genéticos atuais, acaba por cumprir uma infame e nem um pouco inocente função: desmoralizar e ridicularizar o também evolucionista Lamarck, sem levar em conta o momento histórico em que viveu, e oficializar a visão de Darwin, omitindo do leitor o fato de que suas idéias sobre seleção natural a cada dia encontram menos consenso na comunidade científica – o que, bem explicado, não tem nada que ver com endossar o criacionismo, mas apenas com a necessidade de levar em conta outras possibilidades para explicar a história da vida na Terra.

Ou seja, estampar num livro, lado a lado, a explicação lamarckista e a darwiniana para o tamanho do pescoço da girafa produz como efeito imediato a adesão do leitor à teoria darwiniana, sem lhe dar oportunidade para reflexão, por absoluta falta de maiores subsídios. É, em outras palavras, manipulação.

Assim, à conclusão de Jay Gould de que adoramos uma linda história pode-se acrescentar que "acima de nós" existe um bocado de gente que "adora" o fato de adorarmos uma linda história.
No caso específico da realidade brasileira, deparamos com outro agravante: a morosidade com que se dá, aqui, a divulgação das vozes dissonantes publicadas lá fora. Bastam como exemplos os próprios textos que cito neste artigo: todos publicados na mídia americana de divulgação científica, sem terem sido traduzidos ou sequer comentados pela mídia brasileira, e dois deles nem tão recentes assim, de seis anos atrás.

No próximo artigo, em que falarei da controvérsia envolvendo outro "conto" – o das mariposas de Kettlewell –, acrescentarei à discussão mais um aspecto do corporativismo no meio científico: a manipulação de dados na experimentação.

Referências
JAY GOULD, Stephen. "The tallest tale". Natural History Magazine, maio 1996, p. 18-27.
RISSING, Steve. "Giraffe story shows why science sticks its neck out". The Columbus Dispatch, 4 fev. 2001, p. 7C.
SIMMONS, Robert E. & SCHEEPERS, L. "Winning by a neck: sexual selection in the evolution of giraffe". The American Naturalist, 148 (1996), p. 771-86.

(*) Editora de livros didáticos