O Deus que Funciona e 3 Comentários
Por Renato Modernell
(Publicado originalmente no site da AOL Brasil em 30/05/2005)
Jornalista e escritor. Autor de “Sonata da Última Cidade”, “Che Bandoneón”, biografia romanceada do músico argentino Astor Piazzolla, e de “Viagem ao Pavio da Vela”, título premiado na Itália que tem Marco Pólo como protagonista.
Pergunta à queima-roupa, e das brabas. Respondo com o que me vem à cabeça: “Não creio na existência de Deus, mas gosto de ver o goleiro do meu time fazer o sinal-da-cruz”. Sim, parece uma contradição, talvez seja, mas vamos em frente. As contradições têm algo de sagrado; são um fogo interior que nos impulsiona; sem elas, nossa vida seria previsível e banal. Aquela frase entre aspas (verdadeira, mas nem tanto, como o leitor verá) me serve para desenvolver algumas idéias que julgo oportunas, porque incômodas, nos parágrafos seguintes.
Em primeiro lugar, quando digo que não acredito na existência de Deus, refiro-me àquele Deus em que me ensinaram a acreditar numa época em que outros, não eu próprio, julgavam saber o que era bom para mim, começando pela marca do xarope que eu devia tomar quando tinha tosse. Aquele era o Deus com D maiúsculo, Dominador, Drástico, pesaDo, do qual eu era um devedor pelo simples fato de ter nascido com o pecado original, como um time já que entrasse em campo perdendo de três a zero. Isso sempre me pareceu injusto, embora dissessem: “Deus é justo”.
As religiões mais poderosas da banda ocidental do mundo – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo – brigam entre si a despeito de compartilharem suas raízes, ou talvez mesmo por causa disso. Na base, elas têm o mesmo princípio ativo, a culpa. Isso as diferencia das doutrinas orientais (pelo menos daquelas que conheço melhor, como o zen-budismo, o taoísmo, o hinduísmo e o zoroastrismo, tida como a primeira religião “ecológica”). Estas últimas, em vez da culpa, baseiam-se no autoconhecimento, e por isto as considero mais saudáveis e evoluídas. São algo a meio-caminho entre uma religião convencional, que implica submissão, obediência, dogma, e um sistema de pensamento aberto, oxigenado, que integra a ética e a sensibilidade como ferramentas primordiais para uma existência mais elevada.
Transitei, sem vestir a camisa, por cada uma dessas doutrinas que alguns consideram exóticas. Descobri que sou capaz de acreditar em deus, mas num deus assim, com letra minúscula, que não me cobra nem intimida com o D enorme de sua cateDral, ou de sua cáteDra, sob a qual eu deveria me curvar para receber instruções e segui-las ainda que não as compreenda. Não posso conceber uma divindade tão cruel que, tendo-me dotado de inteligência, me condenasse o uso desse atributo no campo mais nobre da existência, que é o contato com a eternidade e o mistério.
Mas dizem que não, que é pecado pensar. As grandes religiões ocidentais se tornaram enormes máquinas políticas e publicitárias. Tirando partido do desamparo do homem contemporâneo, e valendo-se da platitude da mídia, impõem a idéia de um ser superior que deve ser a mesma para todos, gregos e troianos. Cometem, a meu ver, o que seria o mais pretensioso de todos os pecados: descrever Deus. Dizer aos ingênuos: Deus é assim, Deus é assado, quer isto de você, quer aquilo outro etc.
Abro parênteses para evocar um episódio folclórico, mas instrutivo, do mundo do futebol. Seu protagonista é o Anjo das Pernas Tortas. Mané Garrincha, durante a preleção do treinador antes de um jogo contra a Bélgica, farto de ouvir os detalhes do plano tático, e de como os brasileiros deveriam proceder para envolver os adversários, teria tomado a palavra para perguntar: “Mas vocês já avisaram aos belgicanos?” Esta tirada genial (pela perspicácia, pela ironia, e também pelo fato de ser uma resposta em forma de pergunta) veio de um homem cuja inteligência era considerada inferior. Cito-a porque me lembro dela cada vez que vejo alguém, com ar sapiente, falar de algo que não pertence o seu campo de experiência direta, ou que envolve um grau de abstração tão grande quanto traçar o desdobramento de um jogo sem levar em conta a presença dos adversários. Portanto, quando alguém sobe ao púlpito moderno, ou seja, o rádio e a televisão, e afirma aos quatro ventos: “Deus é assim”, “Deus é assado”, pergunto a meus botões, como Garrincha o fez em voz alta no vestiário: “Será que esse sujeito já avisou Deus para ser assim ou assado?”.
Já disse que, embora não acreditando em Deus, sou capaz de acreditar em deus, mas assim, com minúscula. Porém mesmo isso não é exato. Agora eu colocaria no plural: acredito em deuses. Pronto, vejo leitores torcendo o nariz. Alguns já clicam o mouse para mudar de página, indignados por algo que, à primeira vista, parece blasfêmia, provocação. Parece, mas não é. Peço que me acompanhem pelo menos por mais dois parágrafos, sem clicar, e que compartilhem comigo uma pergunta para a qual não tenho resposta.
Sempre ouço pensadores dizer que, em linhas gerais, a humanidade passou do politeísmo ao monoteísmo, e isso teria representado um salto de qualidade. Bem, nunca entendi por quê. Se seguimos pelo bom caminho, se cumprimos nossa missão, se damos aos outros o melhor de nós, que diferença faz que nosso procedimento ocorra sob a batuta de uma ou mais entidades divinas? Todo o desenvolvimento humano nos últimos séculos, pelo menos desde o Renascimento, tem sido em direção à pluralidade, em vez da unificação. Isso se expressa muito bem, aliás, na divisão clássica do sistema de poder que forma a base da democracia. Se nos assuntos temporais já não queremos mais um soberano autocrático, se um dia até lhe cortamos a cabeça à guilhotina, para dividir suas funções em três entidades distintas a que chamamos “poderes”, por que preferimos, no plano imaterial, dever obediência a um único senhor em vez de vários?
Já disse que sou capaz de acreditar em um deus minúsculo, e por isso grandioso, que está nas pequenas coisas; e posso aceitá-lo também no plural. Vários deuses e semideuses cruzam suas influências numa dimensão que não conheço, e por isso não simplifico. E agora vou mais longe: não penso nos deuses como algo que “existe”, mas que “funciona”.
Se os deuses existissem, da mesma forma como eu próprio creio existir (pelo menos não tenho fortes motivos para duvidar), eu os estaria imaginando à minha semelhança, o que seria uma forma de ingênua presunção. Fora dos domínios da culpa – esse enorme shopping center, cheio de escadas rolantes que sobem e descem – não consigo conceber a divindade de um modo personalizado, como alguém que distribui prêmios e castigos, ou que esteja preocupado com o meu destino individual. No entanto, não me sinto desamparado. Não sou ateu. Creio que precisamos de uma espiritualidade, de um saber transcendente, mas não necessariamente de uma religião que impõe dogmas e regras de conduta padronizadas.
Digo isso num momento de apreensão, no qual vejo esta parte do mundo onde vivo toldar-se de um fundamentalismo primário, como se fôssemos um monte de parafusos, e não espíritos pulsantes. Uma coisa dessas não havia por que renascer das cinzas, senão por imitação temerosa ao impulso totalitário de povos distantes. Esse fenômeno, que envolve multidões manipuladas, ameaça triturar a maior relíquia do Ocidente, que é o pensamento liberal, leigo, autônomo (antes o bafo de Nietzsche; hoje os trovões e relâmpagos de Saramago) e que para nós representa um sopro vital, tão importante quanto o ar que respiramos no interior do Mosteiro de São Bento.
Qualquer coisa nos nutre – menos a culpa. Por isso acredito na divindade (se assim posso chamá-la) como sendo o conjunto de forças que atuam no universo, num plano insondável, mas com o qual, por meio da intuição, podemos estar alinhados ou contrapostos, assim como um velejador em relação ao vento. Vale lembrar: o vento, a rigor, não é uma coisa que existe. Mas funciona. Isto é, passa a existir na medida em que circunstâncias complexas provocam o movimento de algumas coisas que, estas sim, existem o tempo inteiro: as moléculas de ar.
Vou tentar um exemplo menos etéreo. Pensemos no papa e no Papai Noel, figuras paramentadas que pertencem ao nosso acervo de imagens, “ícones” da nossa cultura, para usar o clichê do momento. Pois bem, não se discute que o papa existe, é um ser único, como cada um de nós, embora numa situação especial: está no comando da Igreja. Se o meu vizinho se vestir de papa, e vier bater na minha porta, saberei de imediato que se trata de uma impostura, ou de uma brincadeira, pois não há hipótese de que o sumo pontífice, por algum motivo, venha me procurar pessoalmente. Só existe um papa, eu sei quem é, e ele está em Roma.
Com o Papai Noel, é diferente. Se o vejo na rua, numa loja, onde quer que seja, sei que aquela figura é autêntica, na medida do possível, pois não pode ser cópia de algo que não está em lugar algum, ao contrário do papa. E é este fato, o “não existir”, que permite o “funcionamento” do Papai Noel em tantos lugares ao mesmo tempo, em todo o planeta, e não apenas na Lapônia, onde nasceu essa lenda, se não me engano. O fato de eu, adulto, saber que por trás daquela roupa vermelha e das barbas brancas está um homem comum, como eu, suando (literalmente) para ganhar uns trocados, em nada altera a eficiência daquela figura carismática que se reporta a uma parcela relevante da humanidade, as crianças, ainda distantes dos nossos padrões de racionalidade. Ele funciona, portanto. Funciona porque não existe, como o vento, como deus. Como o deus das pequenas coisas, capaz de estar em todos os lugares e em lugar nenhum.
Se isto é uma contradição, que seja bem-vinda. Estamos bem-acompanhados. Os maiores físicos modernos, que no início do século XX deram um passo além dos místicos e poetas, depararam no interior do átomo com certas partículas que, para usar uma linguagem clara, nunca estavam onde eles as procuravam. Entidades sutis, leves, voláteis, eram capazes de “existir” e “não existir” a um só tempo. E esses cientistas usaram uma expressão interessante: disseram que tais partículas, detectáveis apenas por seus efeitos, tinham um atributo diferente do resto das coisas, uma “tendência a existir”.
Com essa idéia, voltemos aos nossos deuses mínimos. Eles tendem a existir cada vez que alguém se supera; ou se abre ao inesperado; ou destrava sua inteligência rendida a pregadores baratos, que atuam por catarse e intimidação. Nada deve ser cobrado de ninguém, no teatro de seu foro íntimo. Até porque uma coisa me parece clara: a fé não depende da vontade. Os profetas obtêm-na por revelação; os simples, pela submissão; os sensitivos, por aquele “sentimento oceânico” a que Freud se referiu, lamentando não ser capaz de experimentá-lo. Mas e o restante da humanidade, que não conta com tais situações privilegiadas, como túneis secretos de acesso à fé que todos gostaríamos de poder usar?
Ainda que eu acreditasse naquele Deus com D maiúsculo, em letras góticas, aquele que distribui prêmios e castigos de forma justa, não acharia plausível que esse ser superior me cobrasse pela fé na mesma medida em que cobra outros homens aos quais se revelou de modo mais intenso e definitivo. Seria injusto. Fora dessas situações especiais, a fé é uma construção lenta, uma empreitada para toda a vida. Lenta e dolorosa. Deus precisa morrer, para que os minúsculos deuses – os que não existem, mas tendem a existir – comecem a surgir nas pequenas coisas, muito longe do púlpito, do altar e do andor. E sobretudo da TV.
Em outras palavras, eu diria que os deuses dependem de nós. São construções mínimas, íntimas, intransferíveis, e por isso eficientes como o Papai Noel. Mesmo o Deus maiúsculo e soberano, aquele da primeira frase, existe para quem acredita – nisto, creio sinceramente. Portanto, se a mim não foi dada a vantagem de ter fé, ao menos me consola ver o goleiro do meu time fazer o sinal-da-cruz. E que o faça logo, antes do atacante adversário. Pois a hora do pênalti já é um pouco como a hora da morte.
Comentários:
(Sumidouro)
30/05/2005 - 22:38 PM
(Santa Catarina)
31/05/2005 - 00:13 AM
Allan Ribeiro
(Teresina - PI)
31/05/2005 - 11:50 AM
Caramba, comentário é esse que fez Xtol, e o do Cesar acima também. Calo a boca!
Só uma coisinha...
Renato,
cara, eu fui católico também. Eu sei o que você quer dizer com culpa e falta de sentido. É assim mesmo que a gente se sente. Eu fui ateu, Renato. Não agüentei a barra de ser católico. Virei Positivista, assim mesmo, com maiúscula. Mas a Ciência foi um deus infiel e fraco. Virei agnóstico. Um dia comecei a ouvir a Palavra. Pessoas pregando, pessoas dando testemunhos, coisas assim. Ai, Renato, eu pensei: "se Deus existir deve ser como essas pessoas (esses fanáticos) dizem. Eles não são muito inteligentes, mas a mensagem deles é coerente, faz sentido, é... racional!"
Que choque! Racional? Mas como? Todo mundo não sabe que ser religioso é ser irracional? Que fé e razão não se misturam?
Foi aí que eu eliminei os intermediários. Peguei a Bíblia que eu tinha ganho e comecei a ler. Veja bem, Renato, eu não fui atrás de ler "Totem e Tabu" do Freud, ou "O Anticristo" de Nietszche ou os comentários de Feuerbach sobre Deus, ou "Deus e os Homens" de Voltaire para saber o que eu deveria pensar sobre Deus. Eu fui direto à fonte. Claro que você vai dizer que existem também o Corão e o Veda que podem ser considerados "fontes". Eu comecei pela Bíblia e, se você não quiser perder tempo pode começar também. Na minha primeira leitura eu não entendi muita coisa, mas as coisas que eu entendi me fizeram tentar de novo. Foi bem aí que as coisas começaram a acontecer. Foi aí que eu comecei a entender Deus. Como Jó disse, eu conhecia Deus de ouvir falar, mas passei a vê-lo com meu próprio entendimento. Minha fé é inteiramente racional. Fui racional no momento em que aceitei Jesus e continuo sendo racional a cada vez que eu ouço meu pastor pregar e comparo o que ele diz com o que está escrito na Bíblia. Ele já errou, a Bíblia nunca!
Renato, futebol é legal, mas não vai durar para sempre. Uma vez eu ouvi uma frase que me deixou pasmo e me fez entender o mundo melhor. É assim "O universo está em expansão (sic) e não há nada que você possa fazer a respeito". Eu quero deixar você com uma no mesmo sentido, mas mais profunda: cara, você tem um espírito imortal e não há nada que você possa fazer a respeito! Já que o seu espírito vai viver para sempre cabe a você decidir onde, (esta a beleza do livre arbítrio). Veja o raciocínio de Blaise Pascal:
1) Se Deus não existe eu não tenho com o que me preocupar.
2) Mas se Ele existe e eu não creio Nele e existe um inferno, para onde irão os que não fizerem uma decisão por Ele, eu tenho tudo a perder.
3) Se eu creio Nele e Ele não existe, eu não tenho nada a perder.
Mas se Ele existe...
Eu simplifiquei para você entender, mas é mais ou menos assim. Foi este mesmo raciocínio que me levou a aceitar Jesus dez anos atrás. Eu decidi dar a Deus 6 meses. Uma espécie de estágio probatório. Se Ele não me decepcionasse nesse período eu continuaria crente. Nesse tempo todo eu decepcionei Deus muitas vezes, mas Ele sempre me acolheu e perdôou todas as vezes que eu pedi e eu não sinto mais culpa, somente gozo. Nunca me arrependi de ter escolhido crer.
Meu desejo sincero é de que você não feche sua mente, não tenha medo do desconhecido.
Tente, Renato, tente!
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